DA AÇÃO DECLARATÓRIA INCIDENTAL E AS IMPLICAÇÕES GERADAS COM A ENTRADA EM VIGOR DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/2015
Por Fernando Cícero Rabelo de Souza Cruz, advogado do Ferreira e Chagas
I – INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como cerne a análise do instituto jurídico da Ação Declaratória Incidental (ADI), prevista na revogada norma do artigo 470, da Lei Federal nº 5.869/73 (CPC/73), promovendo, então, uma breve comparação com entrada em vigor da Lei Federal nº 13.105/2015 (CPC/15) e as consequências provenientes das alterações promovidas pela legislação processual.
Antes de adentrarmos no objeto central do conteúdo supracitado faremos menção a alguns conceitos inerentes ao tema em debate.
Sendo assim, iniciaremos pela defesa, na qual, conforme previsão do artigo 336, do CPC/15, é constituída por questões prévias e questões de mérito. As questões prévias são representadas pelas preliminares, matérias processuais, conforme rol do artigo 307, do CPC/15 e pelas prejudiciais de mérito, nos termos da norma do artigo 503, §1º, do CPC/15. Já as questões de mérito são definidas pelo objeto principal da lide, nos exatos termos do objeto do pedido mediato.
Apenas para esclarecer, o objeto do pedido mediato, mérito da causa, representa, então, o bem jurídico da vida o qual se pretende a proteção do Estado por intermédio de uma tutela jurisdicional, em contrapartida as prejudiciais de mérito representam qualquer antecedente lógico-jurídico, questão fática e de direito, que deva ser analisado, previamente, pelo magistrado para, assim, conseguir atacar o mérito da causa.
Para tanto, de suma importância transcrever trecho da obra Lições de Direito Processual Civil, Câmara (2012, pág. 358), elaborada ainda na vigência do CPC/73, para elucidação do que já foi exposto:
Quando do estudo do objeto da cognição judicial, pode acontecer de surgir no processo controvérsia quanto a um tipo de questão, prévia ao exame do mérito, e cuja resolução irá influenciar a resolução do objeto do processo. São as questões prejudiciais.
Em complementação, vale ainda ressaltar, com base na obra Comentários às alterações do novo CPC, Amaral (2015, pág. 608), já na vigência do atual CPC/15, a evidente manutenção dos conceitos jurídicos das questões preliminares, prejudiciais de mérito e de mérito:
As questões prejudiciais fazem parte do gênero “questões prévias”, que englobam ainda as questões preliminares. Todas as demais questões prévias que não implicarem justaposição das operações anteriormente citadas (questão de fato e questão de direito) serão, portanto, denominadas questões preliminares.
Exemplificativamente, em ação de alimentos na qual o réu contesta a relação de paternidade, a questão principal a ser decidida é o dever de prestar alimentos. O reconhecimento da paternidade é questão prejudicial ao acolhimento do pedido. Não foi objeto do pedido específico do autor – embora pudesse sê-lo, nesta ou em ação autônoma – porém lhe antecede logicamente.
II – DESENVOLVIMENTO
Superado os conceitos mencionados acima, os efeitos da imutabilidade da coisa julgada material atinge o objeto do pedido mediato, ou seja o mérito da causa, previsto, em regra, na parte dispositiva da decisão, conforme previsão das normas dos artigos 502 e 503, ambos, do CPC/15, bem como do artigo 468, do revogado CPC/73, Câmara (2012, pág. 359).
quando a prejudicial surge no seio de um processo onde não constitua o objeto principal. Nesta hipótese, que é a que aqui nos interessa, a prejudicial não é decidida, mas tão-somente conhecida pelo juiz, que se limita a decidir o mérito da causa (ou objeto do processo, o Streitgegenstand dos alemães). Assim sendo, a apreciação que se faça da questão prejudicial será tida, apenas, como fundamento da decisão sobre o mérito, não sendo pois alcançada pela autoridade de coisa julgada (art. 469, III, do CPC).
Desta maneira, considerando que as questões prejudiciais de mérito, fundamentos da decisão meritória, não são protegidas pela autoridade da coisa julgada material, conforme artigo 504, II, do CPC/15 e artigo 469, III, do CPC/73, para obtenção dos efeitos da imutabilidade da coisa julgada nas decisões das questões prejudiciais o CPC/73 e o CPC/15 apresentaram divergências procedimentais, que serão apontadas a seguir.
Considerando que a relação jurídica formada na questão prejudicial (fática e de direito) pode ser matéria de processo autônomo de mérito, o CPC/73, por intermédio dos artigos 5º e 325º, prevê a possibilidade das partes utilizarem da Ação Declaratória Incidental como medida processual de ampliação do objeto principal da demanda, mérito da causa, permitindo, assim, a inclusão da pretensão de declaração da existência ou inexistência do antecedente lógico-jurídico, existente na questão prejudicial, no mérito da causa.
Art. 5 – Se, no curso do processo, se tornar litigiosa relação jurídica de cuja existência ou inexistência depender o julgamento da lide, qualquer das partes poderá requerer que o juiz a declare por sentença.
Art. 325 – Contestando o réu o direito que constitui fundamento do pedido, o autor poderá requerer, no prazo de 10 (dez) dias, que sobre ele o juiz profira sentença incidente, se da declaração da existência ou da inexistência do direito depender, no todo ou em parte, o julgamento da lide (art. 5º). (BRASIL, 1973)
Para tanto, segue posição doutrinária, Câmara (2012, pág. 362):
A ação declaratória incidental mantém intacto o objeto da cognição, alterando apenas o objeto do processo, que passa a incluir uma questão que, em princípio, não o integrava.
Tal previsão faz criar a possibilidade de uma demanda autônoma incidental no curso do processo, no qual surgiu a controvérsia quanto a questão prejudicial, permitindo que o juiz não apenas conheça e analise daquela questão incidentalmente para julgamento da causa, mas que também decida em sua sentença de mérito a prejudicial, fazendo coisa julgada material, conforme artigo 470, do CPC/73:
Art. 470 – Faz, todavia, coisa julgada a resolução da questão prejudicial, se a parte o requerer (arts. 5º e 325), o juiz for competente em razão da matéria e constituir pressuposto necessário para o julgamento da lide..(BRASIL, 1973)
Consequentemente, tal situação impede qualquer possibilidade de novo ajuizamento de uma demanda principal que tenha o mesmo objeto da questão prejudicial decidida em sede de Ação Declaratória Incidental, uma vez que protegida pelo manto da coisa julgada na sentença prolatada, Câmara (2015, pág 362):
“A ação declaratória incidental mantém intacto o objeto da cognição, alterando apenas o objeto do processo, que passa a incluir uma questão que, em princípio, não o integrava.”
Em contrapartida, com a entrada em vigor do CPC/15 há uma extinção da Ação Declaratória Incidental, abrindo, assim, uma exceção pelo legislador para que as questões prejudiciais, fundamentos da decisão de mérito, obtenham os efeitos da coisa julgada material, independentemente, da vontade das partes litigantes quanto a utilização da referida ação autônoma para inclusão do objeto da prejudicial no mérito da causa, como ocorria no CPC/73.
Em síntese, as partes não mais terão o poder de escolha se uma questão prejudicial a lide deva ser pronunciada pelo julgador no dispositivo da sentença com a utilização da demanda incidental, pois não existirá a previsão da Ação Declaratória Incidental.
No caso, o legislador impõe as seguintes condições para alcançar os efeitos da coisa julgada face as decisões incidentais das prejudiciais: existência da questão prejudicial decidida expressamente e incidentemente no processo; ser um antecedente lógico-jurídico do mérito da causa; a seu respeito tiver contraditório prévio e efetivo no incidente, não se aplicando no caso de revelia; configurada a competência em razão da matéria e da pessoa para julgamento da questão prejudicial como principal e, por fim, que não haja restrições probatórias ou limitações à cognição exauriente, conforme norma do artigo 503, §1º e §2, do CPC/15:
Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida.
§ 1º O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se:
I – dessa resolução depender o julgamento do mérito;
II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia;
III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal.
§ 2º A hipótese do § 1º não se aplica se no processo houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial. (BRASIL, 2015)
Apenas para corroborar as alegações apresentadas, segue trecho da obra Comentários às alterações do novo CPC, Amaral (2015, pág. 609):
O CPC/1973 previa expressamente que não fariam coisa julgada as questões prejudiciais (art. 469, III), salvo quando fossem objeto de ação declaratória incidental (art. 470). Neste particular, a mudança proporcionada pelo CPC atual é substancial.
O art. 503 estabelece que a coisa julgada material se estenderá também sobre as questões prejudiciais expressamente decididas, o que independerá de ação declaratória incidental, instituto esse extinto na atual sistemática.
Dessa maneira, pode-se concluir que a única previsão no CPC/15 quanto a possibilidade da utilização de uma ação declaratória incidental se restringiu ao incidente de arguição de falsidade, conforme previsão da norma do artigo 433, do CPC/15.
III – CONCLUSÃO
Diante do exposto, percebe-se que a mudança legislativa teve o condão de simplificar todo o procedimento ao eliminar a ação declaratória incidental, bem como de propiciar uma economia processual, evitando, assim, que novas demandas pudessem ser ajuizadas quanto ao mesmo objeto da questão prejudicial, analisada incidentalmente sem a ADI, uma vez que já houve uma profunda análise cognitiva da situação para fundamento da decisão meritória, contudo não protegida pela imutabilidade da coisa julgada.
Quanto ao referido ponto, inquestionável que a legislação processual trouxe uma maior eficiência, economia e celeridade, evitando, assim, novos embates jurídicos, exclusivamente, de questões prejudiciais profundamente debatidas em cognição exauriente já com pronunciamento jurisdicional sobre o tema, confirmando inclusive os princípios orientadores da ordem processual, conforme norma dos artigos 4, 6 e 188, todos, do CPC/15 .
Entretanto, como qualquer mudança, verifica-se que outros princípios acabaram sendo violados com a alteração do antigo procedimento da Ação Declaratória Incidental, situação que acaba resvalando nas garantias constitucionais do devido processo legal, artigo 5º, LIV, da Constituição da República, conforme será indicado abaixo.
O CPC/15 tem como um de seus pilares o princípio da congruência ou adstrição, no qual o provimento jurisdicional de mérito está limitado ao pedido mediato da causa, portanto, definido os limites da ação pela parte, vedada a decisão que ultrapassa tais limites, sendo nulas as decisões arbitrárias extra, ultra e citra petita, conforme previsão da norma do artigo 141 e 492, ambos, do CPC/15.
Ocorre que, no momento em que o legislador, sem qualquer manifestação de interesse das partes nos autos do processo, prevê a possibilidade dos efeitos da coisa julgada material se estender para questões prejudiciais, fundamentos da decisão meritória, há efetiva alteração do objeto do pedido mediato, mérito da causa, sem que haja efetivo pedido pela parte, portanto há violação ao princípio da congruência ou adstrição, conforme mencionado acima, bem como da inércia da jurisdição, conforme previsão da norma do artigo 2º, do CPC/15.
De mais a mais, retirar o poder da parte na definição dos limites da causa, no que diz respeito a utilização, ou não, da ação declaratória incidental, como era previsto no CPC/73, acaba deixando a cargo do magistrado a verificação dos requisitos previstos no artigo 503, do CPC/15, para que a coisa julgada material alcance a decisão sobre as questões prejudiciais. Tal situação implica na concessão de poderes ao magistrado, situação que propicia arbitrariedades e a própria insegurança jurídica do jurisdicionado, situações vedadas pelas garantias constitucionais do devido processo legal.
Ora, há possibilidade de discussões fervorosas sobre a configuração, ou não, dos elementos previstos no artigo 503, do CPC/15, para que os efeitos da coisa julgada material alcance a decisão sobre as questões prejudiciais, portanto fica a cargo do Poder Jurisdicional decidir uma questão que, por lei, conforme exposto acima, seria de titularidade das partes litigantes na definição dos limites da lide.
Desta maneira, pode-se concluir que a exclusão da Ação Declaratória Incidental, prevista no CPC/15, trouxe melhorias substanciais na celeridade e economia processual, contudo, não podemos deixar de ressaltar, a necessidade de uma atenção e um cuidado redobrado sobre a questão das prejudiciais e a formação da coisa julgada material, evitando, assim, arbitrariedades e violações as garantias constitucionais do devido processo legal e da própria ordem processual do CPC/15, conforme razões indicadas acima.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015
BRASIL. Código de Processo Civil (2015). Código de Processo Civil Brasileiro. Brasília, DF: Senado, 2015
BRASIL. Código de Processo Civil (1973). Código de Processo Civil Brasileiro. Brasília, DF: Senado, 1973
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil: volume 1. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2012