O mercado de legal claims: a antecipação de créditos judiciais como alternativa para mitigar os efeitos da morosidade da entrega jurisdicional
4 de agosto de 2022
Por: Gustavo Guimarães Henrique

A Carta de 1988, em seu artigo 5º, inciso LXXVIII, inserido por meio da Emenda Constitucional nº 45, reza que: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

O legislador, em continência ao mencionado ditame constitucional, não vem poupando esforços no que tange à promoção de mudanças na ritualística dos processos judiciais e administrativos. O movimento acena para o início da década de 90, foi batizada de primeira onda reformista, e contemplou sensíveis alterações na concepção das tutelas de urgência (alterando os ditames do art. 273 do CPC/73 então vigente), alcançando posteriormente a estrutura do Agravo e da então conhecida execução do julgado, como era conhecida, mormente a partir da implementação do art. 475-A e seguintes, com escopo de desburocratizar o processo, atenuando a demora na adjudicação do préstimos jurisdicionais à sociedade.

 Naqueles tempos, o objeto de cobiça do legislador processual se convertia para a busca da efetividade/instrumentalidade do processo, com ecos inegáveis na consagrada obra de Cândido Rangel Dinamarco “A instrumentalidade do Processo” e na formação pretoriana da época, haja vista o consenso de que o caderno de 1973, muito embora solidificado em seu espírito a defesa cega da segurança jurídica e sofisticada técnica, mostrava-se excessivamente racional e burocrático, imprimindo solenidades muito penosas aos atores do processo. 

Eram, todavia, necessárias imersões mais corajosas e estruturais na concepção do processo civil, bem como a revisão dos papéis de todos envolvidos na entrega jurisdicional, com intuito de extirpar as redundâncias e resgatar o prestígio do conteúdo do ato em detrimento da liturgia. O grande processualista Luiz Guilherme Marinoni assevera:

Importa, ainda, o direito à tempestividade da tutela jurisdicional. O direito à tempestividade não só tem a ver com a tutela antecipatória, como também com a compreensão da duração do processo de acordo com o uso racional do tempo processual por parte do réu e do juiz.” (MARINONI Luiz Guilherme e JUNIOR Fredie Didier. A segunda etapa da reforma processual civil. São Paulo: Editora Malheiros, 2003).

As constantes propostas de alteração do texto do Código Buzaid, e evidentemente a remodelação das relações em uma sociedade digital – absurdamente mais ágeis e descomplicadas, escancararam a necessidade da criação de um novo regramento, culminando com a Lei 13.105/15 que conduziu o Novo Código de Processo Civil ao nosso ordenamento.

Desde então, passados sete anos desde a edição da novel Lei Adjetiva, caloroso debate se focou entre dois pilares da atividade jurisdicional tutelados pela Constituição e por todo arcabouço jurídico infraconstitucional: de um lado assegurar e garantir todos os direitos atinentes ao Due Processo of Law e do outro a necessidade de que a prestação se desse em tempo razoável. Justamente na coexistência equilibrada desses dois pilares constitucionais-processuais repousava o dilema do Legislativo.

A verdade é que, após a necessária reflexão do espírito do legislador processual em face dos mais recentes números fornecidos pelo CNJ – Conselho Nacional de Justiça, parece indubitável a sucumbência da celeridade em detrimento da integridade do conjunto de atos e faculdades processuais aos litigantes.

Extrai-se do relatório Justiça em Números 2021 (https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf):

O Poder Judiciário finalizou o ano de 2020 com 75,4 milhões de processos em tramitação  também chamados de processos pendentes na figura 54), aguardando alguma solução definitiva. Desses, 13 milhões, ou seja, 17,2%, estavam suspensos, sobrestados ou em arquivo provisório, aguardando alguma situação jurídica futura. Dessa forma, desconsiderados tais processos, tem-se que, em andamento, ao final do ano de 2020 existiam 62,4 milhões ações judiciais.

O ano de 2017 foi marcado pelo primeiro ano da série histórica em que se constatou freio no acervo, que vinha crescendo desde 2009 e manteve-se relativamente constante em 2017. Em 2018, pela primeira vez na última década, houve de fato redução no volume de casos pendentes, com queda de quase um milhão de processos judiciais.

Em 2019, a redução foi ainda maior, com aproximadamente um milhão e meio de processos a menos em tramitação no Poder Judiciário. Em 2020, foi constatada na série histórica a maior redução do acervo de processos pendentes, com a redução de cerca de dois milhões de processos, confirmando a contínua tendência de baixa desde 2017.”

A análise fria dos números publicados pelo CNJ gera a impressão de relativo refreio na litigiosidade e performance mais efetiva dos órgãos jurisdicionais ou dos instrumentos alternativos de solução de conflitos. Contudo, há de se considerar os efeitos nefastos da COVID-19, especialmente considerando a indisponibilidade de tribunais, serventuários e advogados durante importante parte da pandemia. O próprio CNJ pondera: “É provável que tais números também tenham sido impactados pela pandemia de 2020, tendo em vista que o primeiro grau, onde houve mais queda, 23,3%, exige uma instrução probatória mais detalhada. As decisões terminativas no segundo grau, em que a instrução probatória já se encontra encerrada nos julgamentos recursais, reduziu em menor ordem de grandeza, 8,2%.”

O tema não é novo e tem ecos na retórica imortal de Rui Barbosa na qual a “Justiça tardia nada mais é do que injustiça institucionalizada”. A adjeta realidade é que continuamos exercendo a cultura bélica da contenciosidade que, aliada a complexidade da legislação (especialmente a Tributária) e ao despreparo da máquina judicial em um pais desequilibrado e dotado de dimensões continentais, gera um congestionamento surreal de demandas que pendem de deslinde pelo Poder Judiciário ou órgão administrativo competente.

O resultado desse quadro não poderia ser outro que não um acúmulo majestoso de custos, sem que note benefícios da prestação jurisdicional digna e tempestiva ao jurisdicionado.  Como derradeiro ato dessa ópera trágica:  o aumento do sentimento de impunidade, incerteza e desconfiança no Estado e na Justiça, pelos olhos do cidadão.

É consenso que a solução definitiva do atual status demandaria reformas de magnitude colossal o que somente se vislumbra, com muito otimismo, a longo prazo. Dessa terra devastada, uma alternativa de se mitigar os efeitos da alongada tramitação dos feitos perante a justiça, já se molda à nossa realidade. 

                        Considerando-se que o desígnio de toda ação de índole condenatória é uma importância em dinheiro, o viés de se encarar o pedido tratado na ação como um ativo, ou seja, um recebível soa inevitável. Com raízes nessa premissa, nasce o insumo que faz girar o motor do que convencionou designar de  mercado de “legal claims”.

                        Em termos pragmáticos, trata-se da cessão de uma expectativa de recebimento de determinada soma de dinheiro ainda condicionada à julgamento em última instância judicial (ou eventualmente em sede arbitral), antecipando-se o valor do objeto da ação, mediante pagamento do investidor com deságio. Ou seja, a parte que tenha reconhecimento judicial acerca de pretensão condenatória sobre outrem (contraparte) tem a faculdade de ceder esses créditos a terceiro não envolvido no litígio, de forma integral ou parcial, mediante antecipação por parte do terceiro da soma desagiada, discutida nos autos.

No escólio do notável Sílvio Rodrigues “a cessão de crédito é o negócio jurídico, em geral de caráter oneroso, através do qual o sujeito ativo de uma obrigação a transfere a terceiro, estranho ao negócio original, independentemente da anuência do devedor. O alienante toma o nome de cedente, o adquirente o de cessionário, e o devedor, sujeito passivo da obrigação, o de cedido” (Direito Civil. 27ª ed. ver. atual. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 291).

A migração dos direitos creditórios do litigante ao interessado se dá por via de cessão de crédito, figura típica de Direito Civil e que tem moldura nos arts. 286 e seguintes do Código de 2002 e que consiste no negócio jurídico no qual uma das partes (cedente) transfere a terceiro (cessionário) seus direitos, de forma parcial ou integral.

Por analogia, a operação se assemelharia a antecipação de recebíveis, figura muito comum no cotidiano bancário e de empresas de fomento de crédito, onde o objeto de operações futuras é antecipada por detentor de crédito, isto é, receber antecipadamente por transações fechadas em parcelas, condicionadas a determinado evento subsequente, dentre outras hipóteses.      

No plano processual, tema desse estudo, a melhor prática recomenda, em prol incremento de segurança e publicidade da transação, que o negócio de cessão  de crédito seja feita perante cartório de competência para o caso. Feito isso, a ata notarial carreada que noticia o operação deve migrar para autos do processo, instrumentalizando o pedido de cessão. 

Passo posterior, pugna-se ao Magistrado condutor do processo a alteração do polo processual ao magistrado, isso porque a eficácia do negócio somente se dá pelo deferimento do pedido pelo Juiz condutor da causa, sendo despiciente a notificação a que faz referência o art. 290 da Lei Civil, haja vista a imprescindível publicidade que se empresta à manifestação judicial decorrente do pedido de cessão.

Não só a simplicidade da operação que vem angariando adeptos a esse mercado. O crescimento vigoroso do nicho pode ser explicado pela criação de cadeia de valor a todos os envolvidos direta ou indiretamente no negócio jurídico: para as partes sufocadas pela tramitação tardia, os advogados aos quais igualmente é conferida a alternativa de antecipação dos honorários contratuais e sucumbenciais, aos investidores que se aproveitam de um sistema de relativa segurança em relação ao valor da operação, em face da rigidez do sistema processual e o apego à coisa julgada.

Não bastasse, a antecipação de direitos creditórios judiciais promove benesses periféricas de toda uma cadeia de profissionais com papéis destacados nas diligências técnicas que recairão sobre os ativos: contadores, peritos, analistas de risco, analistas de compliance, pareceristas e advogados terceirizados, cujos préstimos fatalmente serão reclamados nas diligências para apuração da higidez, tanto do ativo, quanto dos riscos da estrutura como um todo.

                        Não é novidade que alguns players do mercado financeiro vêm diversificando carteira de investimentos pela aquisição de precatórios –  em vista da confiança do recebimento tempestivo do valor consignado no título, já há alguns anos. Contudo, o mercado da Legal Claims não vem se restringindo às dívidas públicas, muito em razão das mudança de ingredientes avocadas pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 46/21, que contém os trechos não promulgados da versão do Senado para a PEC dos Precatórios (PEC 23/21). Estendeu seu apetite para pedidos condenatórios em desfavor de entes privados, especialmente empresas AAA, ou seja, companhias com classificação de risco baixo – boas e pontuais pagadoras.

Estima-se que o mercado de Legal Claims no Brasil seja da ordem aproximada de R$ 800 bilhões dada a generosidade do quantitativo de processos em tramitação, que vem aumentando a atratividade de inúmeros investidores para o seguimento, inclusive internacionais, que há muito já farejaram bons retornos para investimentos alternativos em países emergentes. 

Pedra fundamental para garantir sucesso e obediência à legislação das operações versa na avaliação à lupa das lides que serão sumo das antecipações de crédito.  Todos os possíveis percalços processuais, frutos de um sistema de plúrimas oportunidades recursais as partes devem ser conferidas e estudadas. 

A tecnologia jurídica emprestou aliados relevante a esta função e que se consubstanciam nas  ferramentas de inteligência artificial e geração de jurimetria, tendência cada vez mais ordinária em nossos tempo, capazes de determinar com maior grau de probabilidade de êxito da operação, mediante estudo jurídico da incidência da aceitação da tese no Judiciário e a estimativa temporal de finalização da demanda.

A par desses fatores, imprescindível a zelosa avaliação da condição creditícia do cedente com a finalidade de evitar qualquer tipo de embargo que eventualmente venha a recair no crédito. Por fim, o deságio que comporá a precificação do ativo está intimamente ligada ao estágio processual do feito, sendo claro que a agressividade no desconto é maior nas fases preambulares ou em situações de julgamento cuja matéria impacte razoavelmente no valor perquirido ou na essência da própria pretensão. 

Logo, percebe-se que as operações de cessão de créditos judiciais (legal claims) vão se consolidando como alternativa extremamente eficaz para os tempos de retração econômica e contração de liquidez, desde que supervisionada por profissionais com bagagem técnica e experiência para apurar o quilate do negócio jurídico, gerando efeitos positivos em escala, garantindo recebimento mais célere dos importes em juízo, emprestado de forma colateral celeridade às contendas, haja vista a robustez do corpo jurídico dos cessionários – geralmente grandes bancos e fundos de investimento – e o óbvio interesse em antecipar ao máximo a data de liquidação do valor em disputa, assegurando margens de retorno ainda mais generosas.

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