ASPECTOS GERAIS ACERCA DA NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL
Por: Lucas Viana de Carvalho, advogado especialista do Ferreira e Chagas.
1. INTRODUÇÃO
Tema dos mais instigantes e inovadores no atual Código de Processo Civil (Lei 13.105/15), é o instituto da Negociação Processual, disciplinado pelos seus artigos 190 e 191.
A inovação representada pelo instituto acima é um avanço inédito na autonomia da vontade das partes no Processo Civil brasileiro, posto que no regramento processual anterior, prevalecia, quase que de forma absoluta, a vontade jurisdicional do Estado (exceção podia ser vista nos arts 111 e 333, parágrafo único do Código de Processo Civil de 1973), cabendo aos litigantes, tão somente, cumprir o que dela emanava.
Com efeito, há no instituto ora tratado, total sintonia com o princípio da cooperação, consagrado no art. 6º do Código de Processo Civl, por meio do qual buscase alcançar uma decisão justa, que seja resultado do esforço e colaboração comuns entre as partes do próprio estado-juiz.
Daí, vê-se, de plano, que há aqui uma adequação dos instrumentos estatais de solução de litígio aos interesses das partes e o direito material discutido, a fim de lhe conferir maior efetividade. A propósito do tema, Leonardo Greco ensina que as partes, “como destinatárias da prestação jurisdicional, têm também interesse em influir na atividade-meio e, em certas circunstâncias, estão mais habilitadas do que o próprio julgador a adotar decisões sobre os rumos e a ditar providências em harmonia com os objetivos publicísticos do processo, consistentes em assegurar a paz social e a própria manutenção da ordem pública”. (GRECO, Leonardo, p.7)
Portanto, a Negociação Processual, trata da possibilidade de condução pelas partes litigantes do procedimento previsto para o exercício da atividade jurisdicional por meio do Processo, nos casos em que assim for legalmente permitido. É o reconhecimento de que inexiste jurisdição sem jurisdicionados e que estes últimos, respeitadas as garantis constitucionais e a disponibilidade ou indisponibilidade de direitos, estão absolutamente legitimados também a conduzirem os rumos do procedimento.
2. DA NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL
2.1. DA NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL
Antes de conceituar o que vem a ser Negociação Processual, necessário se faz sua situação no Novo Código de Processo Civil, razão pela qual a lição extraída do art. 190 é agora transcrita:
Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
Portanto, observa-se que a Negociação Processual, nada mais é do que a autonomia das partes em, atendendo a certos requisitos de que falaremos mais adiante, estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Tal concepção tem relação direta com o princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo. Todo sujeito de direitos, em nosso ordenamento, é livre para gerir sua vida como melhor lhe aprouver, respeitados, por óbvio, limites legais. O respeito à referida liberdade é basilar para qualquer nação regida pelo estado democrático de direito.
A propósito do autorregramento da vontade, salutar a lição de Fredie Didier Jr:
“(…) o direito que todo sujeito tem de regular juridicamente os seus interesses, de poder definir o que reputa melhor ou mais adequado para sua existência; o direito de regular a própria existência, de construir o próprio caminho e de fazer escolhas. (…).” (DIDIER Jr. Fredie; NOGUEIRA, p.132).
Portanto, o Processo Civil, como ramo do Direito Privado, deve respeitar princípio em referência e também por ele se regular.
Lado outro, adverte Fernando da Fonseca Gajardoni:
“Não se trata de negócio sobre o direito litigioso – essa é a autocomposição, já bastante conhecida. No caso, negocia-se sobre o processo, alterando suas regras, e não sobre o objeto litigioso do processo”. (GAJARDONI, Fernando Fonseca, p.215). Assim resta evidenciado que a Negociação Processual não versa sobre o direito material discutido nos autos e sim, tão somente, sobre as normas referentes ao desenvolver-se do procedimento.
2.2. DOS REQUISITOS
Da própria leitura da norma contida no art. 190, observa-se, claramente, que a negociação processual deve envolver sujeitos capazes e que o direito material discutido nos autos permita autocomposição. Não se trata, portanto, de uma faculdade absoluta das partes.
A este respeito, ensina Elpídio Donizetti:
“a alteração procedimental só pode ser realizada quando a causa versar sobre direitos que admitam autocomposição e as partes forem plenamente capazes. A modificação deve ser realizada mediante consenso e pode incluir o ajuste quanto aos prazos processuais”. (DONIZETI, Elpídio, p.419).
Embora evidente, importante destacar ainda que a Negociação Processual deve se ater tão somente aos ônus, faculdades e deveres processuais das partes, sendo que a composição havida entre elas, produzirá efeitos tão somente aos negociantes.
Tenhamos, por exemplo, determinada lide, em que figuram duas partes integrando o polo ativo e outras a compor o polo passivo. Apenas um autor e um réu resolvem compor entre si, acerca, por exemplo, da redução do prazo de contestação e de eventual Recurso de Apelação, passando a ser de 10 dias e não mais de 15. Referida negociação, terá efeito, tão somente, a este determinado autor e réu. Em relação aos demais litigantes, os prazos correrão como disciplinado pelo ordenamento processual.
2.3. DOS OBJETOS DA NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL
Demonstrados o conceito e requisitos da Negociação Processual, convém tecer considerações acerca do que pode envolver esta negociação, o que será demonstrado adiante.
Segundo ensina Elpídio Donizete, o Fórum Permanente de Processualistas, nos enunciados 19 e 21, exemplifica algumas situações ou atos processuais que podem vir a ser objeto de negociação entre as partes:
“Pacto de impenhorabilidade, acordo de ampliação de prazos das partes de qualquer natureza, acordo de rateio de despesas processuais, dispensa consensual de assistente técnico, acordo para retirar o efeito suspensivo da apelação, acordo para não promover execução provisória (Enunciado 19). Acordo para realização de sustentação oral, acordo para ampliação do tempo de sustentação oral, julgamento antecipado da lide convencional, convenção sobre prova redução de prazos processuais (Enunciado 21).” (DONIZETE, Elpídio. p.420).
Como se observa, a negociação processual pode envolver todos os atos a serem praticados pelas partes no curso e na condução do procedimento, resguardando, sobremaneira, o já mencionado princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo. Demais disso, vê-se também que neste instituto, as partes são dotadas de autonomia e liberdade para melhorar deliberarem acerca dos rumos do procedimento. Ao magistrado cabe exercer a tutela jurisdicional, bem como fiscalizar eventuais ilegalidades e/ou nulidades havidas na negociação.
Calha asseverar que há quem defenda, como Fredie Didier Jr, a possibilidade de a negociação processual abranger até mesmo a coisa julgada material. Referido autor argumenta, para tanto, que, em se tratando de direito que permite a autocomposição, seria possível até mesmo a renúncia pela parte autora do direito reconhecido por sentença transitada em julgado. Vejamos:
“(…) nada impede, também, que as partes acordem no sentido de ignorar a coisa julgada (pressuposto processual negativo) anterior e pedir nova decisão sobre o tema: se as partes são capazes e a questão admite autocomposição, não há razão para impedir – note que a vencedora poderia renunciar ao direito reconhecido por sentença transitada em julgado”. (DIDIER Jr. Fredie; NOGUEIRA, p.382).
Em que pese toda a reverência merecida pelo citado autor, entendemos que não há a possibilidade por ele defendida. É que, a nosso sentir, ignorar o fenômeno da coisa julgada material, seria atentar contra a segurança jurídica, especialmente no que concerne à oponibilidade a terceiros. Demais disso, somos pela compreensão de que o reconhecimento da coisa julgada material é direito indisponível e, uma vez operado tal fenômeno, só seria possível sua modificação por meio de ação rescisória, se presentes os requisitos para tanto. Coadunamos com a ideia de que somente atos inerentes à condução do procedimento pelas partes, como nos exemplos citados acima, podem envolver a negociação processual.
2.4 DA FORMA DA NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL
Conforme já explicitado nos tópicos anteriores, a negociação processual se dá por meio de convenção das partes. Assim, observa-se de plano que o instituto em questão tem natureza jurídica de contrato, razão pela qual resta inserido dentro do movimento que convencionou-se chamar de contratualismo processual, que nada mais é do que se atribuir a certos atos processuais a possibilidade de serem praticados por meio de contrato entre as partes litigantes, desde que o direito material sobre qual versa o procedimento permita a autocomposição.
Com efeito, posto que dotado de natureza contratual, as formas da Negociação Processual serão as mesmas do que aquelas aplicadas aos contratos em geral, sendo admitidas as formas orais, escritas, expressas ou tácitas, podendo ser até mesmo celebrado em audiência. Há, contudo, casos em que a própria lei determina que seja observada a forma escrita, como é o caso, por exemplo, do foro de eleição e convenção de arbitragem.
Noutro giro, adverte-se aqui que, embora a forma escrita não seja exigência absoluta, excetuado os casos prescritos em lei, é recomendável que todo tipo de convecção envolvendo negócio processual se dê por essa forma. É que a forma escrita facilita a prova da realização do negócio, especialmente nos casos em que for necessária eventual alegação de seu descumprimento, além de conferir maior segurança à avença entabulada pelas partes.
2.5 DO INADIMPLEMENTO DE OBRIGAÇÃO ASSUMIDA EM SEDE DE NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL
Descumprida obrigação assumida em convenção de negociação processual, caberá à parte contrária alegar o seu descumprimento, não podendo ser matéria conhecida de ofício pelo juízo. Depende de provocação da parte, sob pena de validade tácita do ato praticado pela parte que descumpriu obrigação objeto de negociação processual.
Tal afirmação decorre de interpretação das normas contidas no art. 65 do CPC, que trata da revogação tácita de cláusula de eleição de foro quando a parte deixa de alegar incompetência de foro diverso daquele previsto na referida cláusula. Há ainda o art. 337, §6º, também do CPC, que prevê aceitação à jurisdição estatal quando não alegada convenção de arbitragem.
Por fim, calha ressaltar o enunciado nº. 252 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “o descumprimento de uma convenção processual válida é matéria cujo conhecimento depende de requerimento”.
Freddie Didier Jr, traz exemplo bastante elucidativo:
“imagine-se o acordo de instância única: as partes negociam que ninguém recorrerá. Se, por acaso, uma das partes recorrer, o órgão jurisdicional não pode deixar de admitir o recurso por esse motivo; cabe à parte recorrida alegar e provar o inadimplemento, sob pena de preclusão. O não-cabimento do recurso em razão do negócio jurídico processual não pode ser conhecido de ofício pelo juiz.” (DIDIER Jr. Fredie; NOGUEIRA, p.391).
Portanto, sob pena de aceitação tácita do descumprimento, deve a parte manifestar nos autos informando ao juízo o descumprimento de cláusula contida em convenção de negociação processual, requerendo, por simples petição, que a parte contrária cumpra o pactuado. Caso assim não proceda, valerá o ato praticado pela parte descumpridora da negociação.
3. CONCLUSÃO
Forte em tudo quanto fora aqui exposto, denota-se que a Negociação Processual apresenta diversas possibilidades para a prática de uma advocacia moderna, de ponta mesmo, que vise a fazer do processo o meio pelo que o Estado exerce sua jurisdição, um direito célere, reconhecedor do papel de destaque e protagonismo que as partes litigantes nele possuem.
Mecanicismos, práticas protelatórias, que contribuem tão somente para o emperramento da marcha processual e impedem a prolação de um provimento final, devem ser postos de lado e dar lugar ao exercício de advocacia séria, comprometida verdadeiramente com a justiça e não tão somente em arrastar e sepultar processos.
4. BIBLIOGRAFIA
DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17.ed. Salvador: Jus Podivim, 2015.
DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19. ed. Ver. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016.
GAJARDONI, Fernando Fonseca. Flexibilização Procedimental. São Paulo: Atlas, 2008.
GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual – primeiras reflexões. Revista Eletrônica de Direito processual. Disponível em: , 2007, Vol. 1.
THEORDORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil volume 1. 56.ed. ver e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015.